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Quilombos auto sustentáveis em Minas Gerais.

A carta endereçada ao Juiz Ordinário Antônio Gonçalves Monte, relatava a prisão de alguns negros fugidos que viviam em um quilombo. Infelizmente, o autor da carta não informa o nome do quilombo e como não específica também a área, fica-se sem condições de localizar esta estrutura quilombola. Entretanto, este documento fornece pistas valiosas para o entendimento destas organizações:

“... a informação que passo a VM. das dos negros apreendidos no Quilombo é a que me dão alguns moradores da Estrada que me dizem que não consta que estes negros tenham feito mortes, nem roubo, porque meteram se para aquelas gerais, a donde plantavam para comer e algodão para se vestir, o que eles assim mesmo indiciavam porque não tinham armas e menos vestuário que só constava de couros e algodão e por armas flechas...”1

Este é um documento raro não só pelas informações mas, principalmente, porque difere da imensa maioria que trata sobre quilombos ou quilombolas na Capitania de Minas Gerais. A diferença é percebida quanto aos contatos que estes mantinham com a população. Na maior parte dos documentos encontrados em diferentes arquivos, os quilombolas são definidos pelos roubos, ataques e mortes que fazem e pelo pavor que causam à população. Consequentemente, é urgente a necessidade de destruí-los a fim de parar com seu poder e audácia, sempre crescente, segundo os relatos.

Todavia, esta carta diz exatamente o contrário. Os moradores que viviam próximos ao quilombo afirmaram para as autoridades que eles não praticavam roubos, assaltos ou mortes na região. Viviam plantando o necessário para a sua sobrevivência e cultivando o algodão para confeccionar roupas. Não tinham armas de fogo, apenas flechas.

Este documento é uma exceção no quadro apresentado pelos quilombos em Minas Gerais, com uma estrutura que se assemelha às encontradas durante o século XIX no Rio de Janeiro. A partir da análise dos diversos relatos sobre quilombos e quilombolas, chega-se à conclusão de que, diferentemente do que ocorria nesta Capitania, o ataque à população não pode servir, no caso de Minas Gerais, para caracterizar este ou aquele tipo de quilombo. Praticamente todas as estruturas encontradas, grandes ou pequenas, praticavam algum tipo de ataque à população; o que difere um pouco é a sua constância. Há alguns grupos que o praticam como mecanismo de sustento; outros o fazem esporadicamente.

A documentação informa, por meios variados, que determinados quilombos eram grandes em termos populacionais. Isto seria uma outra característica dos quilombos Auto Sustentáveis. Com base nestas informações, fica difícil imaginar que uma estrutura de porte tão elevado conseguisse manter populações numerosas somente através de roubos e ataques. Como manter, por exemplo, uma população como a do quilombo do Campo Grande que, em 1746 tinha mais de 600 pessoas? Ou a do Quilombo do Catiguá, que em 1769 foi localizado com mais de 150 jiraus?2

Para o sustento desta população era necessário que o quilombo conseguisse produzir alimento suficiente. Os documentos citam as roças e os armazéns onde os quilombolas guardavam o que colhiam e o seu excedente: Em 1733 foi localizado um Quilombo em Mariana3 com roças; o Quilombo do Campo Grande4 (1746) possuía além das roças, armazéns e paiós; O Quilombo do Sapucaí5 (1759) também possuía roças, o de Pitangui6 (1767) tinha roças de milho, feijão, algodão, melancia e outras frutas; o da Paranaíba7 (1766) tinha copiosas lavouras e mantimentos nos paiós, o de Catiguá8 (1769), o dos Santos Fortes9 (1769) tinham roças; o de São Gonçalo10 (1769) possuía uma horta e o de Samambaia11 (1769) tinha, além do milho plantado, um mandiocal e mais uma roça. Um Quilombo situado nos braços do Rio da Perdição12 (1769) tinha um mandiocal e uma plantação de algodão.

A presença de plantações de algodão em alguns quilombos demonstra a existência de práticas de confecção de tecidos e/ou roupas e pode sugerir a existência de grupos específicos responsáveis por estas atividades.

Trecho de um trabalho de Marcia Amantino.

Próximo Texto: A agricultura dos quilombolas de Minas Gerais.
Texto Anterior: Marx e os quilombos como comunidades agrícolas.

1. Carta de Manoel Rodrigues da Costa para o Sr.. Juiz ordinário Antônio Gonçalves Monte. Jan.1770. Arquivo Conde de Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos). Códice: doc. 88 18,3,5
2. Jirau é um estrado de varas de madeiras usado como mesa, cama ou como armação para a edificação de casas. Se no documento, o autor estiver se referindo a camas, a população do quilombo pode ser avaliada em torno de 150 pessoas, o que já seria um número bastante elevado para uma população quilombola. Mas se estiver tratando de casas, este número pode subir muito. Calculando-se uma média de 4 pessoas por casa, teríamos uma população de 600 pessoas (a mesma indicada na documentação sobre o Quilombo do Campo Grande).
3. SCAPM, Cod 15. P. 109v
4. RAPM, 1903 jan-jun. p.619-21
5. APM, Cod 110, p. 135
6. APM, SC 60, P COD. 118v-119
7. APM SC Cod 60 p. 110v
8. Anais da Biblioteca Nacional. Op. Cit.
9. Idem
10. Idem
11. Idem
12. Idem

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