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Leonor Rizzi e os Selos do Sesquicentenário de Carmo da Cachoeira

 

O Resgate da Memória em Milímetros: o Legado da Profª Leonor Rizzi

O Selo como Documento de Resistência Histórica

Os estudos de história costumam dar atenção aos grandes monumentos, às decisões políticas e às grandes crises econômicas. Porém, muitas vezes a identidade de um povo se apoia em coisas pequenas: objetos do dia a dia e iniciativas que, à primeira vista, parecem simples, mas guardam muito significado.

Em 15 de janeiro de 2008, Carmo da Cachoeira, no sul de Minas Gerais, viveu um desses momentos discretos e importantes. Naquela data, a professora Leonor Rizzi, referência na preservação da memória do município e na proteção animal, pediu à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) a criação de uma série de selos personalizados.

Esse gesto não foi apenas uma formalidade ou uma comemoração comum. Ao encomendar quatro modelos diferentes de selos para marcar o sesquicentenário da Instituição Canônica da Paróquia Nossa Senhora do Carmo, a professora Leonor encontrou uma forma concreta de resgatar a história local e afirmar valores éticos.

Ela usou a filatelia, que desde o século XIX costuma servir para divulgar grandes feitos nacionais, para destacar a história de uma única cidade. Em vez de exaltar conquistas de Estado, colocou em foco a vida da comunidade. Os selos não mostravam apenas a fé oficial da paróquia. Trazendo imagens da antiga arquitetura gótica já marcada pelo tempo, das comunidades mais afastadas do centro e do trabalho do GAPA (Grupo de Apoio e Proteção aos Animais), apontavam também para a responsabilidade com pessoas, espaços e animais.

Este texto busca apresentar e explicar esse episódio. A partir de registros locais, de blogs de memória cultural e de dados institucionais, mostraremos como um pequeno selo pode concentrar conflitos e escolhas entre progresso e memória, fé e prática cotidiana da compaixão, esquecimento e permanência.

2. O Contexto Filatélico e a Inovação da Personalização

2.1. A Democratização do Símbolo Nacional

Para entender a importância do lançamento desses Selos Comemorativos, é preciso olhar rapidamente para a história do correio no Brasil.

O país tem uma tradição filatélica importante: foi a segunda nação do mundo, e a primeira das Américas, a emitir selos postais adesivos, com a famosa série “Olho de Boi”, em 1843.

Durante mais de um século e meio, só o Estado decidiu o que seria retratado nos selos. Esse espaço era usado para homenagear governantes, eventos oficiais e grandes feitos considerados “nacionais”.

Com a virada do milênio, esse cenário começou a mudar.

Em 11 de abril de 2000, o Brasil voltou a se destacar ao criar os “Selos Personalizados”, tornando-se o quinto país do mundo a adotar esse recurso, seguindo o exemplo de países como Austrália e Suíça.

Essa novidade permitiu que instituições e pessoas comuns passassem a associar imagens escolhidas por elas aos selos oficiais. Na prática, a imagem estampada nas correspondências deixou de ser exclusiva do Estado e passou a abrigar também memórias locais, causas específicas e iniciativas individuais.

2.2. O Selo como Ferramenta Pedagógica em Carmo da Cachoeira

A escolha da Professora Leonor Rizzi por este suporte específico revela uma compreensão sofisticada da perenidade material. Diferente de cartazes comemorativos ou panfletos paroquiais, que são efêmeros e descartáveis, o selo postal possui vocação para a eternidade. Ele é catalogado, colecionado por filatelistas ao redor do globo e preservado em álbuns que atravessam gerações.

Ao optar pelos selos personalizados para o Sesquicentenário, Leonor não estava apenas decorando envelopes; ela estava inserindo a Paróquia Nossa Senhora do Carmo e as iniciativas cívicas de Carmo da Cachoeira nos anais da filatelia brasileira.

Ela transformou a história local em um documento oficial do Estado brasileiro, garantindo que, mesmo que as pedras da igreja caíssem ou que as memórias orais se desvanecessem, a imagem daquela comunidade permaneceria circulando.

3. A Arqueologia Visual: O Resgate da Fachada Gótica

3.1. O Trauma da Modernização Arquitetônica

Dois dos quatro modelos encomendados apresentavam um fundo preto, sobre o qual se destacava a representação da antiga fachada gótica da Igreja Matriz. Esta escolha estética e temática toca numa ferida comum a muitas cidades históricas brasileiras: a substituição de estilos arquitetônicos em nome de um suposto progresso ou de novas diretrizes eclesiásticas.

Os registros históricos indicam que a atual configuração da Igreja Matriz sofreu uma reforma significativa iniciada em 1946, sob o comando do Arcebispo de Mariana, Dom Helvécio Gomes de Oliveira, e posteriormente assumida pelos Missionários Redentoristas em 1948, com inauguração em 1949.4 Esse período de meados do século XX foi marcado por uma intensa atividade construtiva que, não raro, resultou na demolição ou descaracterização de templos anteriores.

A "antiga fachada gótica" mencionada na encomenda dos selos refere-se, portanto, a esse estrato temporal anterior, uma memória visual que estava, conforme descrito, "caindo em esquecimento". O estilo gótico (ou neogótico), com sua verticalidade e arcos ogivais, evocava uma espiritualidade que buscava os céus, distinta da solidez mais horizontal ou barroca de outras épocas. A perda dessa fachada representava um apagamento da identidade visual dos antepassados da cidade.

3.2. O Papel do Artista Maurício José Nascimento

Diante da escassez de registros fotográficos de alta qualidade ou da impossibilidade de reverter as reformas físicas, a Professora Leonor recorreu à arte como meio de reconstrução histórica. O artista cachoeirense Maurício José Nascimento 5, foi o encarregado de materializar essa memória.

O uso do fundo preto nos selos não deve ser interpretado apenas como um recurso de contraste. Semiologicamente, ele funciona como o "vazio" do esquecimento, do qual a imagem da igreja emerge luminosa graças ao traço do artista. Maurício José Nascimento não apenas desenhou um prédio; ele realizou um ato de arqueologia pictórica, devolvendo à comunidade a imagem do templo onde seus avós foram batizados e casados. A iniciativa de Leonor em valorizar um artista da terra ("prata da casa") reforça o caráter endógeno da celebração: a história da cidade sendo contada e reconstruída por seus próprios filhos.

Tabela 1: Comparativo das Representações Filatélicas do Sesquicentenário

Modelo do SeloElemento Visual CentralSignificado Histórico e SimbólicoAgente Criativo/Fonte
Selo Tipo 1Fachada Gótica (Antiga Matriz)Resgate da memória arquitetônica pré-1946; resistência ao esquecimento do patrimônio demolido/reformado.Maurício José Nascimento (Artista Plástico)
Selo Tipo 2Variação da Fachada GóticaReforço da identidade visual perdida; ênfase na estética verticalizada do período anterior.Maurício José Nascimento (Artista Plástico)
Selo Tipo 3Santuário Mãe Rainha / São Pedro de RatesCelebração da "Igreja Viva" e periférica; geografia da fé nos bairros; transição de devocionário para comunidade eclesial.Fotomontagem (Acervo Comunitário)
Selo Tipo 4Animais / GAPAInserção da ética animal na moralidade cristã; reconhecimento do trabalho voluntário e cívico de proteção à vida.Arquivo do GAPA / Campanha "Ligue 190"

4. A Geografia Sagrada: Do Santuário à Comunidade São Pedro de Rates

4.1. O Espaço Físico da Devoção

O terceiro selo rompe com a nostalgia do passado arquitetônico para celebrar o dinamismo do presente. A estampa apresenta uma fotomontagem do espaço que originou a atual Comunidade São Pedro de Rates, identificado na época como o "Santuário Mãe Rainha". A precisão geográfica é fundamental para entender a inserção social dessa comunidade: o santuário situava-se na esquina da Rua Francisco de Assis Reis com a Rua Domingos Ribeiro de Rezende.6

Essa localização não é aleatória. As ruas de Carmo da Cachoeira carregam os sobrenomes das famílias fundadoras e influentes (Reis, Rezende) 2, e o estabelecimento de um ponto de devoção em um cruzamento viário simboliza a intersecção entre a vida profana (o trânsito, o comércio, o cotidiano) e o sagrado. O blog local descreve este santuário como um "espaço comunitário" que conduzia à sintonia com a devoção mariana, um local de acolhimento e perdão onde os transeuntes deixavam suas confidências.6

4.2. A Humanização da Fé: Os Nomes da Comunidade

A transição de "Santuário" para "Comunidade São Pedro de Rates" reflete o amadurecimento eclesial impulsionado pelo Concílio Vaticano II, que valorizou as comunidades eclesiais de base. O selo captura esse momento de efervescência. Diferente da Matriz, que é uma instituição de pedra e cal, a comunidade é feita de pessoas.

A pesquisa revela que a força motriz desse espaço não era o clero, mas os leigos. Nomes como Lane, Di, Moreira, Terezinha, Magda, Mariana F. Santana, Dinha, Luzia, Edmilson e Paulino surgem nos registros como os pilares desse acolhimento.8 Eles eram os "donos da casa" que recebiam os fiéis, transformando um terreno baldio ou uma esquina numa extensão do lar cristão. Ao estampar esse espaço no selo, Leonor Rizzi estava canonizando o esforço desses anônimos. Ela estava dizendo que a história da Paróquia não é feita apenas por padres e bispos, mas por Dinha, por Luzia, por Paulino — a infantaria da fé que mantém a religiosidade viva no cotidiano.

5. A Vanguarda Ética: O GAPA e a Revolução da Compaixão

5.1. O GAPA como Resposta à Barbárie

O quarto selo constitui, talvez, a faceta mais revolucionária da coleção. Dedicado aos animais e ao GAPA (Grupo de Apoio e Proteção aos Animais), ele insere a causa animal no coração das celebrações religiosas, algo extremamente avançado para o ano de 2008 em cidades do interior.

O histórico do GAPA é um testemunho da liderança civil de Leonor Rizzi. Fundado oficialmente em dezembro de 2001 (com estatuto e diretoria formalizados em 2002) 2, o grupo nasceu como uma resposta visceral à crueldade institucionalizada. Antes de sua atuação, a prática comum para o controle populacional de animais nas cidades vizinhas envolvia o sacrifício em massa, muitas vezes de formas brutais. O GAPA surgiu para dizer "não" a essa barbárie.

5.2. Números e Ações Concretas: A Campanha "Ligue 190"

O selo não celebrava apenas uma intenção vaga de "amar os bichos", mas resultados políticos e sanitários concretos. Sob a presidência de Leonor e com o apoio da comunidade, o grupo implementou campanhas de esterilização em massa que serviram de modelo para a região. Os registros apontam que, em uma das ações, 398 fêmeas caninas foram esterilizadas, além de felinos e machos.2 Esse número, para uma cidade do porte de Carmo da Cachoeira, representa um impacto demográfico gigantesco na população animal, prevenindo o nascimento de milhares de animais indesejados que estariam condenados ao sofrimento.

Além das cirurgias, o GAPA travou uma batalha cultural. A campanha estampada nos cartazes da cidade — e evocada pelo espírito do selo — trazia a mensagem: "Protegido - Ligue 190 - Denuncie".2 Ao vincular a proteção animal ao número de emergência da Polícia Militar (190), Leonor Rizzi elevou o status do animal de "coisa" para "sujeito de direito", cuja violação da integridade física demandava intervenção policial. O selo comemorativo, portanto, funcionava como um manifesto visual contra os envenenamentos e atropelamentos que ainda assolavam a cidade, reforçando a humanidade da comunidade através da extensão de sua compaixão às outras espécies.

Tabela 2: Impacto e Estrutura do GAPA (Contexto 2001-2008)

Dado / IndicadorDetalhe HistóricoFonte / Referência
Data de FundaçãoDezembro de 2001 (Início das ações); Julho de 2002 (CNPJ)2
LiderançaPresidência de Profª Leonor Rizzi

Prompt do Usuário2

Conquista PrincipalEsterilização de 398 fêmeas caninas em campanha massiva2
Estratégia de ComunicaçãoSlogan "Protegido - Ligue 190 - Denuncie"2
Contexto AnteriorSacrifício de animais de rua em cidades vizinhas2


6. A Guardiã da Memória: O Perfil de Leonor Rizzi e a Cultura Local

6.1. A Intersecção entre Fé, Educação e História

A figura da Professora Leonor Rizzi emerge de todos os documentos não apenas como a autora do pedido dos selos, mas como a curadora da identidade cachoeirense. Envolvida com o "Projeto Partilha" 7, ela dedicava-se à genealogia e à compreensão das raízes das famílias locais, entendendo que a história de uma cidade é a soma das histórias de suas famílias.

Sua visão para o Sesquicentenário foi integradora. Ela não separou a história da igreja da história social. Para ela, celebrar 150 anos de paróquia exigia celebrar o prédio que caiu (memória), o povo que reza hoje (comunidade) e a ética que deve guiar o futuro (proteção animal). Essa visão holística é rara e denota uma intelectualidade refinada, capaz de unir pontas soltas da história local em uma narrativa coerente impressa em selos.

6.2. O Ecossistema de Preservação: Blogs e Arquivos

O trabalho de Leonor não ocorria no vácuo. Ele era sustentado e amplificado por uma rede de preservação cultural, exemplificada pelo blog "Carmo da Cachoeira - História e Cultura", mantido por Rícard Wagner Rizzi.1 Este ecossistema digital, que registra desde os hinos compostos por músicos locais (como os de Jovane e Jobinho ou Maísa Nascimento) 2 até as genealogias dos Vilela e Rezende, serviu como o substrato onde a iniciativa dos selos pôde florescer e ser documentada.

É interessante notar a ironia tecnológica: em 2008, enquanto a internet começava a dominar a guarda da memória (através de blogs e sites), Leonor optou por voltar ao papel, à cola e à tinta do selo.

Ela entendeu que o digital é volátil, mas o selo é físico. Ao fazer isso, ela garantiu uma camada extra de segurança para a história de Carmo da Cachoeira.

7. A Herança de 15 de Janeiro de 2008

A análise exaustiva dos eventos de 15 de janeiro de 2008 revela que a encomenda dos selos comemorativos foi um divisor de águas na autoconsciência histórica de Carmo da Cachoeira. 

A Paróquia Nossa Senhora do Carmo, ao completar seu sesquicentenário, recebeu mais do que uma festa litúrgica; recebeu um espelho onde podia ver seu passado gótico, seu presente comunitário e seu imperativo ético de compaixão.

O legado da Professora Leonor Rizzi reside na materialidade desses pequenos retângulos de papel. Eles ensinam às novas gerações — que talvez nunca tenham visto a fachada antiga da igreja ou que desconheçam as lutas iniciais do GAPA — que a cidade onde vivem é fruto de camadas sucessivas de fé, arte e luta.

A recuperação da fachada pelo traço de Maurício José Nascimento e a eternização dos nomes dos voluntários da Comunidade São Pedro de Rates provam que a história não é um destino, mas uma construção diária.

Em última análise, esses quatro selos funcionam como cápsulas do tempo. Eles viajam, colados em cartas, levando a mensagem de que em Carmo da Cachoeira, no sul das Minas Gerais, a fé se manifesta tanto na pedra da igreja quanto no cuidado com o cão de rua, e que ambos são sagrados. A iniciativa de Leonor Rizzi permanece como um modelo de cidadania cultural, lembrando-nos de que preservar a memória é, antes de tudo, um ato de amor ao futuro.

Análise por IA GPT do texto: Leonor Rizzi e os Selos do Sesquicentenário de Carmo da Cachoeira


1. Quando o Estado “empresta” o símbolo e a comunidade preenche o conteúdo

O ponto de partida do texto é a lembrança de que, durante mais de um século, selo era coisa de Estado: só o governo decidia o que aparecia ali, e o espaço era reservado a heróis nacionais, datas oficiais e grandes feitos.

Quando surgem os selos personalizados, o que acontece, sociologicamente, é uma pequena “democratização” de um símbolo nacional: instituições e pessoas comuns passam a poder colocar suas próprias imagens ao lado da marca oficial do Estado.

Leonor Rizzi se aproveita justamente dessa brecha. Ela não cria um símbolo paralelo; ela entra no próprio sistema estatal (ECT, selos oficiais) e injeta ali a memória de Carmo da Cachoeira, da paróquia e do GAPA.

Em termos sociológicos:

  • O Estado fornece forma e legitimidade: papel, selo, chancela oficial, catálogo filatélico.

  • A comunidade fornece conteúdo e sentido: fachada gótica perdida, periferia religiosa, proteção animal.

O artigo insiste que, ao fazer isso, Leonor “transformou a história local em documento oficial do Estado brasileiro”.
Tradução: em vez de aceitar que só Brasília e as grandes narrativas ocupem o imaginário estatal, uma cidade pequena inscreve seus mortos, seus templos demolidos e seus cães de rua dentro do repertório de símbolos nacionais.

Isso é típico de ação comunitária que não rompe com o Estado, mas reaproveita os dispositivos estatais para interesses locais. Não é confronto aberto, é re-significação silenciosa.


2. A Igreja entre pedra, memória e “infantaria da fé”

O texto mostra uma tensão interna da própria Igreja:

  1. A Igreja como instituição que apaga memória

    • A reforma de 1946–1949, comandada por hierarcas (arcebispo, redentoristas), altera profundamente a Matriz e apaga a antiga fachada gótica.

    • Do ponto de vista da comunidade, isso é vivido como perda de identidade visual dos antepassados.

  2. A Igreja como espaço que abriga a experiência comunitária

    • Os selos recuperam essa fachada “apagada”, por meio do artista local Maurício Nascimento, devolvendo aos fiéis a imagem do templo dos avós.

    • Aqui, a restauração simbólica não vem da cúria, mas de uma professora, um artista da cidade e uma encomenda feita aos Correios.

Na segunda parte, a Igreja aparece “virada para a base”: a Comunidade São Pedro de Rates, nascida do antigo Santuário Mãe Rainha, num cruzamento de ruas com sobrenomes de famílias locais.

O texto destaca que:

  • A força motriz não é o clero, mas leigos concretos, com nome e sobrenome (Lane, Di, Dinha, Luzia, Paulino etc.

  • O santuário funciona como extensão da casa, lugar de confidência e acolhimento.

Em linguagem sociológica simples: a Igreja institucional (hierarquia, reformas, decisões de cúpula) convive com a Igreja como rede comunitária, em que os leigos funcionam como “infraestrutura afetiva” da fé.

Ao colocar essa comunidade num selo, o texto interpreta o gesto de Leonor como uma espécie de “canonização laica” desses leigos: eles entram na memória oficial da paróquia e, por tabela, no sistema postal do Estado.

Então você tem:

  • Uma instituição religiosa que, em certos momentos, apaga o passado (reforma da Matriz).

  • A mesma instituição, recuperada e humanizada quando a base leiga e uma educadora se apropriam dos símbolos para contar outra história.


3. GAPA: quando a comunidade corrige a barbárie institucional

No trecho sobre o GAPA, a relação com o Estado fica bem mais clara. O texto é explícito: antes do GAPA, a política pública para animais era essencialmente matar bicho de rua de forma cruel.

Leonor e o grupo fazem três movimentos típicos de uma mobilização comunitária madura:

  1. Substituem uma prática estatal violenta por uma prática de cuidado

    • Campanhas de esterilização em massa, com centenas de fêmeas caninas e outros animais operados.

    • Isso altera a própria “demografia” animal da cidade, reduzindo sofrimento futuro.

  2. Usam o aparato do Estado a seu favor

    • O grupo se formaliza (estatuto, CNPJ).

    • A campanha “Protegido – Ligue 190 – Denuncie” amarra a proteção animal ao número da Polícia Militar.

    • Na prática, se alguém maltrata animais, não é “problema privado”; vira assunto de polícia.

  3. Transformam um tema ético em tema religioso e comunitário

    • O selo do GAPA é incluído dentro da comemoração do sesquicentenário da paróquia.

    • Ou seja: maltratar animais é incompatível não só com a lei, mas com a fé da comunidade.

Resultado: a comunidade ocupa um vazio do Estado (política de controle animal) e, ao mesmo tempo, civiliza o próprio Estado, obrigando-o a enxergar o bicho como “sujeito de direito” que pode acionar o 190, ainda que por meio da denúncia humana.

Aqui, Igreja e Estado aparecem alinhados porque são atravessados pelo mesmo núcleo comunitário: o grupo que reza, organiza o GAPA, pressiona o poder público e cola selo em carta é, em boa parte, o mesmo povo.


4. Selos, blog e memória: três níveis de mediação

Outro ponto socialmente interessante é a coexistência de três camadas de guarda da memória:

  1. A camada digital, representada pelo próprio blog “Carmo da Cachoeira – História e Cultura”, que documenta genealogias, hinos locais, campanhas e a própria história dos selos.

  2. A camada institucional, em que a paróquia registra datas, reformas, capelães, eventos oficiais.

  3. A camada filatélica, onde a memória local entra no circuito estatal de longa duração (catálogos de selos, coleções etc.).

O texto quase faz uma crítica irônica à fragilidade da internet: o digital é volátil; o selo é físico.

Sociologicamente, isso mostra uma desconfiança (bem razoável) em relação à capacidade das grandes infraestruturas informacionais de preservar memória de cidades pequenas. A aposta é em redundância:

  • Se o blog cair, o selo continua em álbuns de filatelistas e arquivos dos Correios.

  • Se a igreja fisicamente ruir, a fachada antiga continua desenhada.

  • Se o Estado esquecer a campanha do GAPA, o selo ainda testemunha que, um dia, aquela comunidade decidiu que bicho de rua não é lixo.


5. Em que sentido o artigo mostra uma “sociedade ativa” e não só instituições?

No conjunto, o texto constrói Leonor Rizzi como figura-síntese de três papéis sociais:

  • Educadora (escola, genealogia, projeto Partilha).

  • Mediadora religiosa (articula paróquia, comunidades de base, devoção mariana).

  • Liderança cívica (GAPA, campanhas, uso do 190, selos).

Isso foge da imagem clássica de Estado que “faz” e povo que “recebe”. Na leitura sociológica do artigo:

  • O Estado é frequentemente reativo: abre o programa de selos personalizados, mas não decide o conteúdo; recebe a pressão do GAPA e adapta práticas.

  • A Igreja oscila entre imposição institucional (reforma da Matriz) e abertura às bases (comunidade São Pedro de Rates).

  • A comunidade organizada é quem puxa o fio: ela usa o correio estatal, negocia com a hierarquia religiosa, mobiliza a polícia, articula blog, campanha, selo e memória.

A conclusão do texto, aliás, é bem sociológica sem usar essa palavra: os selos são “cápsulas do tempo” que ensinam às novas gerações que a cidade nasceu de camadas de fé, arte e luta, e que cuidar do templo e do cão de rua faz parte do mesmo horizonte ético.

Em termos simples: o artigo mostra uma comunidade que não espera benevolência do Estado nem apenas orientação da Igreja. Ela negocia, pressiona, ocupa espaços simbólicos e, no fim, força essas instituições a se comportarem um pouco melhor do que fariam por conta própria.

Ou seja: para variar, quem salva a honra das instituições não são as instituições, mas o povo organizado.

Arquivo

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A jude-nos a contar a história de Carmo da Cachoeira. Aproveite o espaço " comentários " para relatar algo sobre esta foto, histórias, fatos e curiosidades. Assim como casos, fatos e dados históricos referentes a nossa cidade e região. Próxima imagem: Sete de Setembro em Carmo da Cachoeira em 1977. Imagem anterior: Uma antiga família de Carmo da Cachoeira.

A Família Campos no Sul de Minas Gerais.

P edro Romeiro de Campos é o ancestral da família Campos do Sul de Minas , especialmente de Três Pontas . Não consegui estabelecer ligação com os Campos de Pitangui , descendentes de Joaquina do Pompéu . P edro Romeiro de Campos foi Sesmeiro nas Cabeceiras do Córrego Quebra - Canoas ¹ . Residia em Barra Longa e casou-se com Luiza de Souza Castro ² que era bisneta de Salvador Fernandes Furtado de Mendonça . Filhos do casal: - Ana Pulqueria da Siqueira casado com José Dias de Souza; - Cônego Francisco da Silva Campos , ordenado em São Paulo , a 18.12. 1778 , foi um catequizador dos índios da Zona da Mata ; - Pe. José da Silva Campos, batatizado em Barra Longa a 04.09. 1759 ; - João Romeiro Furtado de Mendonça; - Joaquim da Silva Campos , Cirurgião-Mor casado com Rosa Maria de Jesus, filha de Francisco Gonçalves Landim e Paula dos Anjos Filhos, segundo informações de familiares: - Ana Rosa Silveria de Jesus e Campos , primeira esposa de Antônio José Rabelo Silva Pereira , este nascido...

Antiga foto da cidade de Carmo da Cachoeira.

A jude-nos a contar a história de Carmo da Cachoeira. Aproveite o espaço " comentários " para relatar algo sobre esta foto, histórias, fatos e curiosidades. Assim como casos, fatos e dados históricos referentes a nossa cidade e região. Foto: Paulo Naves dos Reis Próxima imagem: Imagem da mata da fazenda Caxambu em Minas. Imagem anterior: Um pouco sobre a região do distrito de Palmital.