Talvez uma das coisas de que a professora Leonor Rizzi mais gostasse em Carmo da Cachoeira fossem as festividades cristãs. Via nelas não apenas a beleza dos ritos, mas, sobretudo, o protagonismo e a visibilidade que conferiam às pessoas da comunidade, tantas vezes deixadas à margem da memória histórica e cultural.
Graças à homenagem póstuma oferecida pela Câmara Municipal a Dona Leonor, por iniciativa da vereadora Maria Beatriz Reis Mendes (Bia), revisitei a cidade. Confesso que a primeira parada no “Estação Café com Arte”, no Bairro da Estação, indicada pela própria vereadora, teve algo de peregrinação afetiva: eu caminhava pelos espaços tentando adivinhar o que, ali, chamaria mais a atenção de Leonor.
Foi então que encontrei algo que, tenho certeza, a encantaria: a confecção artesanal do frontão do palco do Auto de Natal deste ano. Naquele trabalho paciente das mãos, na madeira, na tinta e nos detalhes, reconheci o mesmo espírito que atravessava os textos que ela escreveu, nos últimos anos, sobre as festividades natalinas, especialmente as Pastorinhas e a Folia de Reis. Esses artigos não eram apenas registros; eram declarações de afeto e de respeito por uma fé vivida em comunidade e pelo olhar das pessoas simples que ela se recusou a deixar desaparecer.
No entanto, nem só a empatia movia Leonor, o interesse dela pela história nunca cessava, e foi assim que ela resgatou um antigo conto do cachoeirense Profº Wanderley Ferreira de Rezende.
Leia a versão deste conto em história em quadrinhos
Um Conto de Natal em Carmo da Cachoeira
24 de dezembro. Dez horas da noite.
No alpendre de sua nova residência, aguardando a hora da missa do galo, Leonardo conversava com o irmão enquanto, um pouco afastada, Josefa contava aos filhos a história do nascimento de Jesus.
— Há uns 20 dias atrás — dizia Leonardo — as pessoas que por mim passassem haveriam de pensar, e não sem razão, que dentro em breve eu iria aumentar o número dos que vivem da caridade pública.
— E se tal viesse a acontecer? Perguntou Pedro.
— Seria a vontade de Deus e eu a ela me submeteria humildemente. Não me julgaria diminuído com isso, por que, como sabemos, São Francisco de Assis, que era rico, lá um dia desprezou a riqueza, o luxo em que vivia e foi procurar a sua santificação metendo-se entre os que viviam miseravelmente de esmolas.
Um dos meninos interrompeu a conversa, dizendo:
— Se papai precisasse viver de esmolas, seria só enquanto nós ainda não tivéssemos forças para trabalhar. Seria uma vergonha pra nós, não é, mamãe?
— Certamente, meu filho. Quem pode trabalhar não deve viver à custa do trabalho alheio porque, se o fizer, não somente cometerá um crime contra a sociedade, mas também incorrerá no desagrado de Deus que não quer que ninguém viva na ociosidade e sim que todos trabalhem para ganhar honestamente tudo aquilo de que necessitem pra viver.
— Já que estamos falando em esmolas — atalhou Pedro — vamos tratar de um assunto de grande interesse para nós e para mais alguém e sobre o qual venho pensado há vários dias. Trata-se do seguinte: Como vocês já não ignoram, o dinheiro que tenho em bancos e minhas propriedades de São Paulo, rendem bem mais do que precisamos para viver confortavelmente; ora, como sou solteiro, os meus herdeiros serão meus sobrinhos e não penso em acumular dinheiro pra eles, visto como, quando estiverem na idade, cada um escolherá a profissão que quiser e, portanto, ficarão habilitados a ganhar a vida mais facilmente, porém trabalhando.
— Estou de pleno acordo com sua idéia, meu irmão — assentiu Leonardo — porque meu desejo é mesmo que meus filhos possam viver do seu trabalho; isso será não só uma grande honra para eles, mas também um preservativo contra a ociosidade que, como dizem os moralistas, é a mãe de todos os vícios.
— Pois bem. Em vista de tudo isso e como de antemão já contava com o apoio de vocês à minha idéia, digo-lhes que resolvi distribuir o que nos sobra pelos necessitados, pelos que, comprovadamente não podem trabalhar para prover o próprio sustento e o de sua família, se tiver. Que dizem vocês a isto?
— Dizemos que é uma idéia excelente e digna do verdadeiro cristão que você é.
— Então começaremos a tratar disto amanhã mesmo, porque comemoraremos melhor o nascimento de Jesus Cristo e os pobres terão também sua festa de Natal.
Meia-noite. Ajoelhados entre a multidão que enchia a igreja. Leonardo e Josefa oravam fervorosamente, pedindo a Deus a felicidade do irmão e cunhado; daquele homem que, no meio da abundância, não se esquecida dos pobrezinhos que passavam a vida só Deus sabe como; daquele homem extraordinário que pouco antes havia manifestado tamanha prova de amor ao próximo, propondo-se realizar uma obra que, se pudesse servir de exemplo e encontrasse muitos imitadores, colocaria a humanidade no caminho que a conduziria à verdadeira Fraternidade Universal.
Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.
Prof Wanderley Ferreira de Rezende
Análise Crítica do artigo através da IA Gemini
1. O Natal como Fato Social em Minas Gerais
A análise do registro documental referente às celebrações natalinas em Carmo da Cachoeira oferece uma oportunidade singular para a dissecção das dinâmicas comportamentais que regem as comunidades do interior de Minas Gerais. Este relatório, não se limita a uma leitura superficial das festividades. Propõe-se, antes, a uma investigação sobre como o evento é o principal mecanismo de identidade comunitária.
O Natal em Carmo da Cachoeira configura-se como um "Fato Social Total", na acepção de Marcel Mauss, pois mobiliza dimensões religiosas, jurídicas (as leis da hospitalidade), estéticas, econômicas e psicológicas. A inclusão de textos literários locais revela que a memória não é apenas espontânea, mas ativamente cultivada por "guardiões culturais" — professores e cronistas — que utilizam a narrativa para fixar valores morais.
2. A Literatura como Espelho Moral: O "Conto de Natal" e a Ética do Trabalho
A inserção do "Conto de Natal" de autoria do Prof. Wanderley Ferreira de Rezende, figura central na educação local e patrono de escola estadual, permite uma análise profunda da moralidade econômica que está por trás da festividade. O conto não é apenas entretenimento; é uma ferramenta pedagógica comportamental.
2.1. O Dilema: Caridade versus Ociosidade
No diálogo entre os personagens Leonardo, Josefa e Pedro, observa-se uma tensão explícita entre o imperativo cristão da caridade e a ética do trabalho (provavelmente influenciada por uma moral católica conservadora).
A Ameaça da Vergonha: Quando o personagem Leonardo cogita viver da caridade, a reação imediata do filho é associar isso à "vergonha". Psicologicamente, isso reforça a norma social de que a pobreza só é digna se for acompanhada de esforço.
A Pedagogia do Desapego: A decisão do tio Pedro de doar sua fortuna para não corromper os sobrinhos com a "ociosidade" é um mito fundador. Sociologicamente, essa narrativa serve para pacificar as desigualdades de classe. Ao criar um ideal onde o rico se desfaz voluntariamente da riqueza em prol do bem comum ("Fraternidade Universal"), o conto sugere que a justiça social virá da benevolência individual, e não do conflito.
2.2. A Construção do "Bom Pobre" e do "Bom Rico"
O texto de Rezende estabelece arquétipos comportamentais que devem ser emulados pela comunidade:
O Bom Rico (Pedro): Não acumula para si, teme que o dinheiro vicie os herdeiros, e vê na doação uma forma de santificação (paralelo com São Francisco de Assis).
O Bom Pobre (Leonardo/Josefa): Aceita a vontade de Deus com humildade, mas valoriza o trabalho honesto acima de tudo.
Essa literatura atua como um "script" para o comportamento real durante o Natal: espera-se que os abastados pratiquem a generosidade radical e que os necessitados demonstrem gratidão e laboriosidade.
3. O Olhar do "Outro" e a Validação Cultural: O Legado de Leonor Rizzi
A análise dos escritos e da biografia de Leonor Rizzi introduz a figura do "observador participante". Nascida em Itu (SP) e radicada em Carmo da Cachoeira após a aposentadoria, Rizzi desempenha o papel antropológico de validar a cultura local através de um olhar externo qualificado.
3.1. Visibilidade dos Marginalizados
O texto destaca que Rizzi via nas festividades (Pastorinhas, Folia de Reis) uma forma de conferir "protagonismo e visibilidade" às pessoas à margem da memória histórica.
Análise Comportamental: Rituais como a Folia de Reis operam uma inversão de status. O trabalhador rural simples, ao vestir a farda da Folia ou empunhar a bandeira, torna-se um "Reis", um mensageiro divino digno de ser recebido nas salas de visita das casas mais ricas. Rizzi identificou que o Natal é o momento em que a hierarquia rígida da cidade é suspensa em favor de uma "communitas" sagrada.
O Palco como Altar: A menção à confecção artesanal do frontão do palco do Auto de Natal reforça a valorização do trabalho manual como expressão de fé. Para Rizzi, a estética não é acessória; é a materialização da dignidade do povo simples.
3.2. A "Estação Café com Arte" como Locus de Memória
A referência à visita do narrador ao "Estação Café com Arte" no Bairro da Estação sugere a existência de espaços físicos que funcionam como âncoras de memória. Em comunidades pequenas, certos locais transcendem sua função comercial para se tornarem santuários seculares onde a identidade coletiva é performada e preservada.
4. A Neurobiologia da Nostalgia e a Arquitetura da Memória
4.1. O Olfato como Vetor de Continuidade Histórica
O texto sobre o Natal em Carmo da Cachoeira destaca muito os cheiros. Na nossa mente, a região responsável pelo olfato se liga diretamente às partes do cérebro que cuidam da memória e das emoções. Por isso, o cheiro das especiarias e dos assados faz a pessoa “voltar no tempo” e sentir de novo a segurança dos Natais da infância.
Manter a comida feita em casa, do jeito tradicional, acaba sendo, mesmo sem perceber, uma forma de proteger esse tipo de lembrança e de ligação afetiva.
4.2. A Memória Seletiva e a Reconstrução Utópica
A memória apresentada, tanto na crônica quanto no conto de Rezende, passa por um filtro de idealização ("viés de positividade"). Os conflitos reais são suprimidos em favor de uma narrativa de harmonia absoluta e fraternidade universal.
Este "esquecimento seletivo" tem função adaptativa: ao criar uma memória mítica de um passado ou de um comportamento ideal, a comunidade estabelece uma meta normativa. As famílias esforçam-se para replicar essa harmonia, suspendendo conflitos reais durante o período festivo.
5. A Sociologia da Mesa: Comensalidade e a Economia da Dádiva
5.1. O Imperativo da Fartura
Em Carmo da Cachoeira, a "mesa farta" é símbolo de dignidade. Psicologicamente, a ostentação de alimentos sinaliza triunfo sobre a precariedade histórica. O comportamento de cozinhar em excesso é uma estratégia de segurança psicológica; a sobra é essencial para evitar a vergonha social da escassez.
5.2. A Teoria da Dádiva e a Folia de Reis
A Folia de Reis, mencionada por Rizzi e confirmada como tradição central que ocorre até o dia 6 de janeiro, exemplifica a economia da dádiva.
A Visita: Os grupos de Folia visitam as casas, oferecendo música e bênçãos (o sagrado).
A Retribuição: Os moradores devem oferecer comida e prendas (o profano/material).
Essa troca não é opcional. Recusar a Folia ou não oferecer alimento seria uma ruptura grave do contrato social, atraindo desonra e isolamento.
6. Espaços Sagrados e a Geografia do Afeto
6.1. O Presépio como Tecnologia de Re-ligação
A montagem do presépio com materiais locais opera uma sacralização do território de Carmo da Cachoeira. O morador simbolicamente funde a Terra Santa com o solo mineiro. A visitação aos presépios cria um fluxo circulatório de pessoas que rompe o isolamento doméstico.
6.2. A Varanda e a Janela
A arquitetura das casas, com varandas voltadas para a rua (como no conto de Rezende, onde Leonardo espera a missa no alpendre), desempenha papel fundamental. A varanda é o palco da socialização segura; sentar-se nela é sinalizar disponibilidade para a interação comunitária.
7. Síntese dos Dados e Comparativos Estruturais
Tabela 1: Anatomia do Ritual Natalino em Carmo da Cachoeira (Atualizada)
| Elemento do Ritual | Ação Comportamental | Função Psicológica/Social | Leitura aprofundada |
| A Literatura Local | Leitura e recontagem de contos (ex: Prof. Wanderley). | Fixação de normas morais; pedagogia do "bom comportamento". | O conto atua como "mito regulador", prevenindo o conflito de classes através da idealização da caridade. |
| A Cozinha | Preparo coletivo e prolongado. | Fortalecimento de vínculos; terapia ocupacional. | A cozinha é o "confessionário informal" e o laboratório de alquimia social. |
| A Folia de Reis | Peregrinação musical pelas casas. | Inclusão dos marginalizados; santificação do território doméstico. | Transforma a casa privada em espaço público sagrado momentâneo. |
| A Dádiva (Presente) | Troca de lembranças ou caridade (no conto). | Materialização do afeto; criação de dívida de gratidão. | O valor do presente é moral, medido pelo sacrifício ou pela intenção educativa. |
8. Conclusão: A Resiliência do Arcaico como Futuro
A integração dos textos de Leonor Rizzi e Wanderley Ferreira de Rezende reforça a tese de que o Natal em Carmo da Cachoeira é uma tecnologia social sofisticada.
A análise demonstra que a comunidade não apenas "celebra" o Natal, mas o utiliza ativamente para:
Ensinar Ética: Através de contos que valorizam o trabalho e condenam a ociosidade.
Integrar Margens: Através de ritos como a Folia de Reis, que dão visibilidade aos invisíveis.
Resistir ao Esquecimento: Através da escrita de cronistas que transformam a memória oral em registro histórico perene.
O comportamento observado é, portanto, uma defesa da integridade psíquica do grupo. Em um mundo líquido, Carmo da Cachoeira agarra-se a seus ritos e contos como âncoras de sentido, garantindo que, ano após ano, a "Fraternidade Universal" sonhada por Leonardo e Pedro no conto de natal seja, ao menos por uma noite, uma realidade tangível.


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