Em 25 de dezembro de 2008, enquanto a maior parte dos cachoeirenses se ocupava com ceias, fogos e discursos previsíveis, a professora Leonor Rizzi publicou anonimamente, no campo de comentários de uma de suas matérias, algumas frases que, à primeira vista, pareciam deslocadas: uma referência a um estudo sobre Almeida Faria publicado na revista Nau Literária e uma passagem sobre romances de António Lobo Antunes e José Saramago.
Ontem, ao revisitar esse material, localizei essas notas “laterais” e só então percebi o que, de fato, ela estava fazendo ali. Aqueles comentários funcionam como chave de leitura do próprio trabalho de Leonor sobre a história de Carmo da Cachoeira e do sul de Minas, ao evidenciar as tensões e opressões reprimidas por trás das relações sociais registradas nos antigos documentos.
Nada disso é gratuito. Como demonstração prática de método, ela anexou, logo em seguida, a transcrição de um inventário de 1788, que também reproduzo, tal como ela o fez, na segunda parte desta postagem.
1. Crítica social embalada em papel de presente
O primeiro comentário remete a um artigo de Lígia Savio, em que ela analisa uma série de romances de Almeida Faria, nos quais uma família rural do Alentejo serve de espelho para a história recente de Portugal, com seus impasses políticos e o desgaste das velhas estruturas de poder.
O segundo comentário menciona romances de António Lobo Antunes e José Saramago, que desmontam a fala oficial, tiram os “pais da pátria” do pedestal e mostram como a história é feita de versões e disputas, não de verdades prontas.
Quando Leonor destaca palavras como “cosmopolitismo”, “comunidade cultural sem fronteiras” e “desconfiança com relação a qualquer pacto nacionalista”, ela faz isso num texto sobre uma pequena cidade do sul de Minas, publicado no dia de Natal.
A fineza está justamente aí: sem polêmica aberta, sem brigar com ninguém, ela coloca Carmo da Cachoeira dentro de uma conversa maior sobre quem conta a história e a serviço de quê.
2. O modo de entender Carmo da Cachoeira
Essas notas funcionam como uma espécie de manifesto discreto.
Primeiro, elas indicam que, para Leonor, a história de Carmo da Cachoeira não é um álbum de “grandes feitos” de beneméritos e patronos. A cidade é, antes, um tecido de memórias, silêncios e conflitos, que pode ser lido à maneira de certos romances contemporâneos: como narrativa em disputa, cheia de vozes, interrupções e zonas de profunda sombra.
Segundo, ao mencionar autores que dessacralizam heróis nacionais, Leonor sinaliza que não se sente obrigada a tratar as elites locais como santos de vitral. Sua escrita é respeitosa, mas não é servil. Ela se interessa mais pelas pessoas comuns, pelos animais de rua, pelas festas populares, pelos detalhes de inventários e registros paroquiais do que pela autocelebração de famílias influentes.
Terceiro, quando ela evoca a ideia de uma “comunidade cultural sem fronteiras”, liga Carmo da Cachoeira a um espaço mais amplo: o do mundo luso-brasileiro, das rotas coloniais, das migrações internas, das conexões entre Minas, São Paulo e outras regiões. A cidade não aparece como um ponto isolado, mas como nó de uma rede que atravessa séculos.
Em resumo, essas notas anunciam uma postura: a de quem escreve a história local com consciência crítica, sem se submeter ao nacionalismo retórico, nem ao municipalismo ufanista que prefere legendas douradas a documentos.
3. Do comentário literário ao inventário: o método em ação
Logo após esses comentários, vem a transcrição de um inventário de 1788, oriundo de São João del Rei, elaborado a partir de um documento custodiado em arquivo e copiado por uma colaboradora do Projeto Partilha.
À primeira vista, o salto parece brusco: de Saramago e Lobo Antunes para uma lista de escravos, foices, enxadas e uma escritura de fazenda vendida a um Leme qualquer. No entanto, é justamente aí que o gesto de Leonor se revela.
Enquanto os romances citados trabalham com famílias, propriedades rurais e memórias em decomposição para pensar a história de Portugal, o inventário de 1788 permite ver, em escala documental, a engrenagem social que, de forma direta ou indireta, alimentou a ocupação da região que mais tarde formaria o atual sul de Minas. Os nomes, os bens, os escravizados, os instrumentos de trabalho e as redes de procuração inscritos nesse documento ajudam a mapear:
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a circulação de famílias e capitais;
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o lugar central da escravização de pessoas na construção da riqueza colonial;
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a ligação entre grandes núcleos, como São João del Rei, e as áreas de fronteira agrícola mais ao sul.
Leonor não precisa escrever um tratado para dizer isso. Basta anexar o inventário num texto publicado em pleno 25 de dezembro, ao lado de reflexões sobre literatura que questiona mitos nacionais. O contraste fala por si.
Enquanto a retórica oficial insiste em “tradição” e “fundadores”, o documento mostra, com frieza, o que sustentava a vida econômica e social do período.
Se alguém quiser forçar a vista um pouco mais, não é difícil imaginar que os descendentes daqueles escravizados anônimos, reduzidos a números neste inventário, sejam hoje justamente quem ainda disputa espaço nas festas religiosas da cidade: o Auto de Natal, as Pastorinhas, a Folia de Reis. Talvez não seja coincidência que Leonor tenha dedicado tanta atenção e apoio a essas manifestações. Conhecendo as origens, ela sabia que, por trás dos cânticos, figurinos e enfeites, estavam corpos e vozes de gente que, durante séculos, só apareceu em papel como propriedade alheia.
4. Elegância crítica e feridas locais
Há, ainda, um detalhe que não é irrelevante: a data da postagem. Publicar tudo isso no dia de Natal de 2008 é um gesto simbólico. Em vez de repetir fórmulas devocionais ou discursos edificantes, Leonor oferece ao leitor uma combinação estranha e poderosa:
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um texto sobre Carmo da Cachoeira;
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referências a romances que desconstruem heróis nacionais;
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uma defesa implícita do cosmopolitismo contra o nacionalismo estreito;
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e, em seguida, um inventário colonial com dez escravos listados entre foices, enxadas e machado.
Ela o faz em tom acadêmico discreto, cuidando para não ferir susceptibilidades menos afeitas à crítica. Prefere sugerir a confrontar, deixar o documento falar, construir pontes silenciosas entre a literatura que interroga o passado e a documentação que sustenta a memória local.
Ao reler hoje esse material, posso ser mais direto do que ela: o que essas notas e esse inventário fazem é puxar a história de Carmo da Cachoeira para fora do conforto das narrativas limpinhas. Lembram que o município, como tantos outros, é herdeiro de uma longa cadeia de violência, hierarquias e disputas, e que a tarefa de quem pesquisa não é emoldurar mitos, mas expor as camadas de verdade incômoda escondidas sob festas, brasões e homenagens.
O que segue abaixo é a transcrição integral do inventário que Leonor publicou naquela ocasião, preservando a forma com que foi registrado pelo Projeto Partilha. Ele é, ao mesmo tempo, documento e comentário: um espelho pouco lisonjeiro do mundo que antecede a formação do sul de Minas e, por consequência, a história de Carmo da Cachoeira.
Inventário transcrito
Transcrição de documento por Edriana Aparecida Nolasco a pedido do Projeto Partilha.
Tipo de documento - Inventário
Ano - 1788 caixa - 182
Inventariados - (Victor) Vitor Antônio de Oliveira e Maria da Silva.
Inventariante - João Modesto de Oliveira
Local - São João del Rei
Fl.01
Inventário dos bens que ficaram por falecimento de Victor Antônio de Oliveira e sua mulher Maria da Silva de quem é inventariante seu filho João Modesto de Oliveira.
Data - 15 de dezembro de 1788
Local - Vila de São João del Rei.
Fl. 07
Bens
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10 escravos
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03 foices; 03 enxadas; 01 machado
Uma escritura de 500$000 de uma fazenda que se vendeu a Francisco Leme.
Fl.08
Filhos
01 - Valério de Oliveira Leitão
02 - Agostinho da Silva
03 - Manoel Antônio Saldanha
04 - João de Souza
05 - Beatriz Maria
06 - Maria de Oliveira
07 - João Modesto de Oliveira
Fl.10
PROCURAÇÃO
Procuradores nomeados - José da Silveira e Souza; José Rabello Maia; Gomes da Silva Pereira; Capitão Antônio Gonçalves Figueiredo; Alferes Manoel de Sá Peixoto Ferraz (Ferrás); Francisco Soares da Graça.
Local - Vila de São João del Rei
Data - 09 de janeiro de 1789
Que faz - Valério de Oliveira Leitão.
Análise pela IA Gemini do artigo: Carmo da Cachoeira: Notas de Natal e um inventário de 1788
1. Introdução: O Tecelão e os Fios da Memória
A história de uma comunidade nunca é um reflexo estático do passado; é, antes, uma construção ativa, um edifício erguido tijolo por tijolo por aqueles que assumem a tarefa de lembrar. No contexto da cidade de Carmo da Cachoeira, no sul de Minas Gerais, essa tarefa foi assumida, com vigor e devoção, pela professora e genealogista Leonor Rizzi. O presente relatório propõe-se a realizar uma análise exaustiva e crítica sobre o trabalho desenvolvido por Rizzi, materializado no "Projeto Partilha", e sobre a historiografia local que dele emana.
Para compreendermos a profundidade desse legado, não basta listar datas e nomes. É necessário investigar as engrenagens invisíveis que movem a narrativa histórica local. A nossa análise será guiada por dois faróis principais: primeiro, a suavização da crítica social, onde observaremos como as arestas cortantes da desigualdade, da violência e do preconceito são polidas por um prisma psicológico que busca a harmonia e a identidade comunitária; segundo, a leitura historiográfica rigorosa, onde confrontaremos essa narrativa suave com a frieza dos documentos de arquivo — os livros de tombo, os inventários e os processos criminais — que revelam um passado muito mais turbulento e contraditório.
A figura de Leonor Rizzi, nascida em Itu em 1944 e transplantada para o solo mineiro, serve como o ponto focal desta investigação. Ela não é apenas uma autora; ela é um filtro. Através das suas escolhas, do que ela decidiu publicar e do que permaneceu nas notas de rodapé, podemos entender não apenas a história de Carmo da Cachoeira, mas a psicologia de toda uma região que busca, incessantemente, enobrecer as suas origens enquanto tenta cicatrizar, muitas vezes através do silêncio ou da oração, as feridas abertas pela colonização e pela escravidão.
Este documento evitará o "academiquês" impenetrável, optando por uma linguagem clara e acessível, mas sem abrir mão da profundidade analítica. Ao longo destas páginas, viajaremos desde os mitos fundadores do "deserto desnudo" até aos tribunais eclesiásticos que julgavam a pureza de sangue, tecendo uma crítica que respeita o trabalho de preservação da memória, mas que se recusa a aceitar a versão "oficial" como a única verdade possível.
2. A Suavização da Crítica Social: O Prisma Psicológico da Harmonia
A primeira camada da nossa análise foca num fenómeno fascinante: a capacidade humana de reescrever a dor como superação e o conflito como "provação". No trabalho de Leonor Rizzi e na historiografia popular de Carmo da Cachoeira, observa-se um esforço contínuo para "suavizar" a realidade social. Isso não deve ser interpretado necessariamente como uma mentira deliberada, mas como um mecanismo de defesa psicológica e social. Uma comunidade precisa gostar de si mesma para prosperar, e a história bruta, muitas vezes, não é "gostável".
2.1 A Genealogia como Terapia Social
A genealogia é a espinha dorsal do Projeto Partilha. No entanto, a forma como ela é praticada e apresentada revela muito sobre a psicologia local. Ao analisarmos os dados sobre a família Leme e a obsessão em traçar linhagens até à nobreza de Bruges, na Bélgica, percebemos que a genealogia aqui funciona como uma ferramenta de elevação social retroativa.
Numa sociedade marcada por profundas desigualdades, onde a maioria da população descende de trabalhadores rurais, imigrantes pobres ou pessoas escravizadas, a descoberta de um brasão de armas ou de um antepassado "Capitão-Mor" atua como um bálsamo. O "prisma psicológico" mencionado na proposta de análise manifesta-se aqui na transformação da história de exploração em história de "pioneirismo".
Quando o Projeto Partilha destaca a conexão com Fernão Dias Pais Leme, o foco recai sobre a "bravura" e a "abertura de caminhos". A crítica social, que poderia apontar o fato de as Bandeiras serem expedições de caça ao índio e de apropriação violenta de terras, é suavizada. O bandeirante deixa de ser o agente do genocídio indígena para se tornar o "avô fundador".
Esta suavização tem uma função social clara: integração. Se todos (ou muitos) na cidade podem reivindicar uma ligação, ainda que ténue, a estas grandes famílias fundadoras — os Rezende, os Vilela, os Leme — cria-se uma sensação de "família alargada". As diferenças de classe entre o dono da fazenda e o funcionário da loja são, psicologicamente, atenuadas pela ideia de que "no fundo, somos todos parentes".
2.2 A Santificação do Espaço: O Santuário e a Fé como Amortecedores
A biografia de Leonor Rizzi destaca um feito singular em 2007: a construção do "Santuário Mãe Rainha e Vencedora Três Vezes Admirável de Schoenstatt".
Carmo da Cachoeira, como veremos na análise historiográfica, é um território marcado por disputas de terra, violência policial e o trauma da escravidão. Como se lida com a memória de um solo encharcado de sangue e suor forçado? A resposta encontrada por Rizzi e pela comunidade foi a sacralização.
Ao erguer um santuário, a narrativa desloca-se do eixo político-social (quem manda, quem obedece, quem tem terra) para o eixo espiritual (oração, perdão, unidade). A "Mãe Rainha" torna-se a figura central que paira acima dos conflitos. Psicologicamente, o santuário oferece um espaço de purificação. A crítica social dura — aquela que exigiria reforma agrária ou reparações históricas — é substituída pela prática da caridade e da oração.
A suavização ocorre porque a religião, nesta leitura, propõe a igualdade perante Deus para compensar a desigualdade perante os homens. O trabalho de Rizzi, ao entrelaçar a pesquisa histórica com a missão evangelizadora, acaba por "batizar" a história da cidade, limpando-a dos seus pecados originais através da narrativa da fé.
2.3 A Figura da Matriarca Intelectual
A própria construção da imagem de Leonor Rizzi contribui para este abrandamento. Descrita como filha de um ferroviário e de uma costureira, a sua trajetória é a do mérito e do serviço. Ela não é uma "coronel" que impõe a história; é uma professora que "partilha". O nome "Projeto Partilha" é, em si, um termo suavizador.
A história real é feita de expropriação (tomar do outro). O projeto chama-se "Partilha" (dividir com o outro). Há aqui uma inversão semântica poderosa. Ao focar na partilha de informações, de memórias e de orações, o projeto cria uma atmosfera de comunitarismo que mascara a realidade histórica da concentração de bens e poderes.
A análise psicológica sugere que Rizzi assume o arquétipo da "Guardiã". Em cidades pequenas, a Guardiã da memória tem um poder imenso: ela decide o que é lembrado com orgulho e o que é sussurrado com vergonha. Ao optar por uma narrativa focada nas famílias, na igreja e na educação, ela constrói um espelho onde a cidade pode olhar-se sem sentir a culpa do passado escravocrata.
3. Leitura Historiográfica: O Confronto com os Dados Brutos
Se a primeira parte deste relatório focou na "suavidade" da narrativa construída, esta segunda parte dedica-se à "dureza" dos dados encontrados. Quando despimos a história de Carmo da Cachoeira da sua roupagem genealógica romântica e olhamos para os documentos técnicos emerge um quadro radicalmente diferente.
A historiografia crítica não aceita a versão dos vencedores. Ela lê as entrelinhas dos Livros de Tombo e escuta os silêncios dos testamentos. Abaixo, detalhamos os aspectos cruciais desta leitura técnica e contextual.
3.1 O Mito do "Deserto Desnudo" e a Ocupação Territorial
A história oficial de Carmo da Cachoeira, conforme reproduzida em sites municipais e na narrativa fundadora, começa muitas vezes com a expressão "deserto desnudo". Este termo é historiograficamente explosivo.
O que o termo diz: Sugere que a terra estava vazia, virgem, à espera da civilização trazida pelos Rattes e pelos Avelinos.
O que o termo esconde: No Brasil do século XVIII e XIX, não existiam "desertos". Existiam territórios indígenas. A utilização do termo "deserto" é uma técnica jurídica e retórica colonial (terra nullius) para legitimar a posse. Se não havia ninguém, a terra pertence a quem a cerca.
A leitura crítica dos dados sobre a fundação — a doação de terras para o património da igreja, a criação da capela em 1845/47, a elevação a distrito — revela o mecanismo clássico de urbanização do interior mineiro: a privatização do espaço público através do sagrado. O fazendeiro doa um pedaço de terra para o santo (a Igreja). Ao redor da capela, nasce o povoado. As terras do fazendeiro, agora vizinhas de uma vila, valorizam-se exponencialmente. A fé, historiograficamente falando, serviu como motor da especulação imobiliária original.
Os "fundadores" não eram apenas homens piedosos; eram empreendedores agrários que precisavam de um núcleo urbano para fixar mão de obra e escoar produção. A "suavização" chama isto de "doação"; a historiografia chama de "consolidação de poder local".
3.2 A Sombra da Inquisição: O Caso Luzia Correa
Um dos achados mais impressionantes e perturbadores nos dados recolhidos é o episódio envolvendo Luzia Correa de Souza e a Ordem Terceira do Carmo. Este dado rompe violentamente com a imagem de uma comunidade harmoniosa e cristã.
O documento relata que Luzia, tendo fama de "cristã-nova" (descendente de judeus convertidos à força), sentou-se num tapete na capela. O Prior da ordem, Sargento-Mor José da Costa Teixeira, mandou queimar o tapete após ela se levantar, num ato de purificação ritual e de humilhação pública.
Tabela 1: Análise Historiográfica do Caso Luzia Correa
| Elemento do Evento | Significado na Época (Contexto Colonial) | Leitura Historiográfica Crítica |
| A Acusação | "Fama de cristã-nova". Não era necessário prova, apenas o boato. | Demonstra a persistência do antissemitismo ibérico no interior do Brasil séculos após a conversão forçada. |
| A Ação | Queimar o tapete onde ela se sentou. | Acredita-se na "contaminação" física pela heresia. O corpo da mulher é visto como vetor de impureza. |
| A Consequência | Exclusão social dela e, anos depois, do seu neto (Jerônimo). | A "mancha" de sangue é hereditária. O estigma define o acesso a espaços de poder (Ordens Terceiras eram clubes de elite). |
| O Agente | Sargento-Mor (autoridade militar) agindo na Igreja. | A fusão entre poder militar, religioso e social. Não havia separação entre pecado, crime e desonra. |
Este episódio é fundamental para contestar a narrativa suave. Ele mostra que Carmo da Cachoeira não foi fundada apenas sobre a fé, mas sobre a exclusão. Para ser "irmão" na ordem, era preciso ter "limpeza de sangue". A genealogia, tão celebrada hoje por Rizzi, servia na época como uma arma de segregação: provar que não se tinha "sangue infecto" de judeu, negro ou índio era passaporte para a cidadania plena.
3.3 A Violência Endémica e a Falta de Estado
A narrativa biográfica de Leonor Rizzi foca na ordem e no progresso (escolas, igrejas). No entanto, os documentos de arquivo do século XVIII e XIX pintam um cenário de "faroeste mineiro".
Temos menções a um "Coronel Francisco Leme" que atira primeiro num réu e intimida testemunhas. Temos "Francisco Antônio de Almeida" envolvido em desordens. O documento refere-se casualmente a um artigo sobre "O subdelegado e o espancador de escravos".
A leitura contextual destes dados indica a ausência do monopólio da violência pelo Estado. Quem mandava não era o juiz enviado pela Coroa ou pelo Império, mas o potentado local, o coronel, o dono da milícia.
Implicação Historiográfica: A "paz" que a narrativa atual celebra é, na verdade, o resultado do silenciamento das vozes dissonantes. A ordem era mantida à bala e no chicote. Quando a história oficial fala em "famílias tradicionais", o historiador deve ler "clãs armados que sobreviveram às disputas de poder".
O Espancador de Escravos: A presença deste título no acervo do Projeto Partilha é reveladora. O fato de ser tratado como um episódio, uma "curiosidade" ao lado da fundação da igreja, é um exemplo de como a violência extrema é banalizada. Para a vítima, o espancamento era a totalidade da sua existência trágica; para a história local suavizada, é uma nota de rodapé pitoresca sobre os "costumes antigos".
3.4 O Livro Tombo como Fonte e Filtro
O uso extensivo do Livro Tombo da Paróquia como fonte primária por Rizzi merece uma análise técnica. O Livro Tombo é um registro administrativo da Igreja. Ele anota o que é importante para a instituição: visitas do Bispo, criação de patrimônio, sacramentos.
Ao basear a história da cidade nesta fonte, a narrativa torna-se institucionalizada.
O tempo é medido pela sucessão dos padres (Padre Joaquim, Monsenhor Nardi).
Os eventos importantes são os litúrgicos (visitas pastorais).
O povo comum só aparece quando batiza, casa ou morre — ou quando comete um "pecado público".
Historiograficamente, isso cria um viés de "cima para baixo". Não lemos a história dos trabalhadores da lavoura de café, nem das mulheres que lavavam roupa no riacho, a não ser que elas entrem na órbita do padre. A "suavização" é inerente à fonte: o Livro Tombo tende a registrar a ordem restaurada, não o conflito em curso.
4. Integração: O Encontro da Psicologia com a História
Neste ponto do relatório, cruzamos os dois focos. Como a necessidade psicológica de suavização (Foco 1) lida com a brutalidade dos dados historiográficos recém-expostos (Foco 2)?
4.1 A Reinterpretação dos Leme: De Bandeirantes a Nobres
O caso da família Leme é o exemplo perfeito desta alquimia.
O Dado Bruto: Fernão Dias e seus descendentes foram líderes de expedições paramilitares que devastaram as missões jesuíticas e caçaram indígenas para escravização. A riqueza inicial veio da captura humana e, posteriormente, da terra tomada.
A Narrativa Suavizada: O foco desloca-se para a origem europeia distante (Martim Lems de Bruges). Discute-se o brasão, a ligação com a Flandres, a "importância para a colonização".
O Mecanismo: Ao focar na Bélgica do século XV, a narrativa salta por cima da violência do século XVII e XVIII no Brasil. O "sangue nobre" lava o "sangue derramado". Leonor Rizzi, ao compilar estas genealogias, oferece à comunidade uma identidade europeia higienizada, permitindo que os moradores de Carmo da Cachoeira se sintam herdeiros de uma tradição civilizatória, e não de uma tradição predatória.
4.2 O "Partilha" como Seleção de Memória
O Projeto Partilha, portanto, não é um arquivo neutro. Ele é um curador de identidade. A análise mostra que há espaço para o "espancador de escravos" e para a "cristã-nova", mas eles ocupam um lugar diferente na hierarquia da memória.
A fundação da Igreja e a biografia da "Mãe Rainha" ocupam o centro, iluminadas e celebradas. Os episódios de violência e preconceito ocupam a periferia, como curiosidades sombrias que servem para dar "sabor" à antiguidade do lugar, mas sem ameaçar a autoimagem positiva da comunidade atual.
O "Partilha" funciona como um filtro social. Ele diz: "Olhem, nós tivemos problemas (o espancador, o preconceito), mas vejam como superamos tudo isso através da fé e das famílias fortes (o Santuário, os Leme)". É uma narrativa de redenção, não de denúncia.
4.3 A Identidade Híbrida de Carmo da Cachoeira
O resultado deste processo é uma identidade local híbrida. O morador de Carmo da Cachoeira, educado pela narrativa de Rizzi, vive entre dois mundos:
O Mundo Idealizado: Onde ele é descendente de pioneiros corajosos, vive numa cidade abençoada pela Mãe Rainha e faz parte de uma grande família genealógica.
O Mundo Documental: Onde ele pisa num solo marcado pela exclusão de cristãos-novos, pela violência dos coronéis e pelo trabalho escravo que ergueu as fazendas.
O trabalho de Leonor Rizzi é a ponte que permite transitar entre esses mundos sem cair no abismo do trauma. Ela oferece a "história possível" — aquela que pode ser contada no almoço de domingo sem causar indigestão, mas que, para o olhar atento do historiador, deixa escapar os gritos do passado.
5. Análise Detalhada dos Documentos e Dados (Expansão Técnica)
5.1 Os Testamentos e a Cultura da Morte
Os testamentos, como o do Padre Inácio da Silva Cardoso. A historiografia das mentalidades (influenciada por autores como Philippe Ariès e, no Brasil, João José Reis) ensina-nos a ler estes documentos não apenas como listas de bens, mas como mapas da alma.
O medo do inferno e do purgatório movia a economia. Deixavam-se bens para missas, para as almas, para os santos. Em Carmo da Cachoeira, a acumulação de terras pela Igreja (que permitiu a fundação da cidade) está diretamente ligada a este "comércio da salvação". A "suavização" hoje vê isso como piedade; a leitura econômica vê como transferência de capital.
Além disso, os testamentos listam escravos. "Deixo a mulata Fulana...". Esta é a prova cabal da coisificação humana. A narrativa genealógica muitas vezes ignora os ramos ilegítimos que surgiram destes "bens". Quantos Leme ou Rezende não têm, na verdade, sangue da "mulata Fulana" que foi apagado dos registros oficiais mas persiste na genética da população? A genealogia de Rizzi, focada nos casamentos legítimos, tende a ignorar a vasta descendência ilegítima fruto do abuso patriarcal.
5.2 O Livro Tombo e a "Criação" da Paróquia
O registro de 1926 sobre a criação da paróquia e as testemunhas citadas ("Anna de Tal, moradora no terreiro da May do Réo") são pepitas de ouro historiográfico.
"Terreiro da May do Réo": Esta expressão é fascinante. Pode indicar um local de religiosidade popular ou de matriz africana, ou simplesmente a casa de uma matriarca local conhecida por uma alcunha. O uso de "de Tal" para Anna indica sua baixa extração social.
O contraste: Enquanto o Bispo tem nome completo e título (Dom João Baptista Correa Nery), as testemunhas do povo são figuras quase anônimas. A história oficial dá o palco ao Bispo; a história social deve resgatar a "May do Réo". Quem era ela? O projeto de Rizzi preservou o nome, o que é louvável, mas a narrativa hegemônica raramente se detém para contar a história dela com a mesma reverência que conta a do Vigário Joaquim.
6. Conclusão: A Importância da Crítica na Preservação da Memória
A análise crítica do artigo sobre Leonor Rizzi e do seu vasto trabalho no Projeto Partilha leva-nos a uma conclusão matizada. Não estamos diante de uma falsificação da história, mas de uma domesticação da mesma.
Leonor Rizzi, operando dentro das limitações e das necessidades psicológicas do seu tempo e do seu meio social, realizou um trabalho hercúleo de preservação. Sem ela, talvez nem soubéssemos do episódio do tapete queimado de Luzia Correa ou da existência do "espancador de escravos". O paradoxo é que, ao salvar os documentos, ela salvou também as provas contra a narrativa suavizada que a sua obra, por vezes, promove.
Para o leitor contemporâneo, a riqueza reside em ler o "Projeto Partilha" a contrapelo.
Onde o texto diz "Pioneiro", leia-se "Colonizador em terra alheia".
Onde o texto diz "Devoção", leia-se também "Poder Institucional da Igreja".
Onde o texto diz "Família Tradicional", investigue-se quem foi excluído para que essa tradição se mantivesse "pura".
A suavização da crítica social sob um prisma psicológico serviu para criar uma identidade local coesa e orgulhosa, centrada no Santuário e nos Sobrenomes. No entanto, a leitura historiográfica dos dados exige que reconheçamos o custo dessa coesão: o silenciamento das violências estruturais (racismo, mandonismo, intolerância religiosa) que forjaram a verdadeira face de Carmo da Cachoeira.
Este relatório, portanto, não encerra o assunto, mas convida a um novo olhar: um olhar que aceita a beleza da "Mãe Rainha" no santuário, mas que não desvia os olhos da fumaça do tapete queimado de Luzia Correa. É nessa tensão entre a fé que cura e a história que fere que reside a verdadeira humanidade de Carmo da Cachoeira.
Anexo: Dados Estruturados e Comparações
Tabela 2: O Contraste entre Narrativa e Documento
| Tema | Narrativa "Suavizada" (Foco Social/Psicológico) | Evidência Documental (Foco Historiográfico) | |
| Origem da Cidade | Doação piedosa de terras pelos Rattis e Avelinos; o "Deserto Desnudo". | Especulação fundiária; apropriação de territórios indígenas (apagamento); valorização de terras privadas via urbanização. | |
| Identidade Étnica | Descendência europeia (Belgas/Lemes), Italiana (Rizzi). | Presença de "Cristãos-Novos" perseguidos; base populacional escrava e mestiça (citada nos inventários). | |
| Ordem Social | A cidade guiada pela fé, visitas pastorais, construção de escolas. | Violência endêmica; Coronéis que atiram em réus; Intimidação de testemunhas; Justiça privada. | |
| Escravidão | Tema periférico; foco nos "bons senhores" ou casos isolados ("o espancador"). | Estrutural e onipresente nos testamentos; seres humanos listados como móveis/bens. | |
| Religião | Unidade católica como centro. | Palco de exclusão social (Ordem Terceira); Antissemitismo ativo; Disputas de poder e honra dentro da igreja. |
Tabela 3: Cronologia Comparada
| Ano | Evento Oficial (Memória de Rizzi) | Evento/Contexto Social (História Crítica) |
| Séc. XVIII | Chegada dos Leme e primeiros povoadores. | Caça ao índio, conflitos por sesmarias, Inquisição atuante (Caso Luzia). |
| 1845-47 | Construção da primeira Capela. | Consolidação do poder dos fazendeiros locais sobre o núcleo urbano. |
| 1888-89 | (Período da Abolição/República - pouco enfatizado no artigo). | Transição do poder escravocrata para o coronelismo republicano (continuidade das elites). |
| 1926 | Criação da Paróquia (Documento oficial). | Testemunhas populares ("May do Réo") mostram uma sociedade estratificada e complexa. |
| 1944 | Nascimento de Leonor Rizzi. | Início da transição urbana; modernização lenta (ferrovia). |
| 2007 | Construção do Santuário Mãe Rainha. | Consolidação da narrativa de pacificação e identidade espiritual da cidade. |
Este relatório cumpre a função de dissecar a obra e o contexto, oferecendo uma visão que é, ao mesmo tempo, respeitosa com o esforço biográfico e implacável com a verdade histórica.

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